




(…)
« […] e, no final, uma humanidade morta jaz junto das suas realizações, cuja invenção exigiu tanto do seu espírito que não lhe sobrou nenhum para as usar.».
Karl Krauss, «Apocalipse», em Nesta Grande Época – sátiras escolhidas (trad. António Sousa Ribeiro), ed. Relógio d’Água Editores (2018).
Read More(…)Ao modelar o humano, Prometheus aquece-lhe o espírito com o fogo que furta aos deuses, inflama-o com o fervor de reinar sobre o mundo natural. Como que se o ser-humano queira permanentemente adquirir uma existência sobre-natural. E, no entanto, no excesso da sua força, a natureza, sempre insuperável, precipita-se sobre ele. Uma vez consumada a história, uma vez dispensados todos os esforços do espírito, quando o pensamento e a acção são vãos, resta ao humano o desaparecimento, o retorno ao animal. Todo o seu empreendimento, os sobressaltos e lutas, as invenções e conquistas, culminam e desmoronam na sua precaridade, na ausência do humano em si mesmo, na inescapabilidade de uma inumanidade fundamental. Como pode o sensato e cauteloso Prometheus, que tudo antecipa, conduzir o ser-humano à sua animalização? Será este o seu erro fatal?
(…)Em O erro de Prometheus, acompanham-nos três desenhos com o título de Golem, rostos humanos indexados a personagens da filmografia de Béla Tarr. Na mitologia, o golem é uma figura criada a partir do barro, tal como os seres naturais no mito de Prometheus e Epimeteu.
(…)
Nos desenhos de Genesís II nota-se o correr da mão num experimentalismo auto-referencial que oscila entre a profundidade e a superfície, no confronto do negativo e positivo, de um nada e um algo. Desenhos de pequeno formato, plenos de força e vitalidade, de urgência febril. A luz imaterial que consegue atravessar a matriz toma forma visível no papel fotossensível. Vida a despontar, a elevar-se. Na série Apocalipse, são-nos sugeridos ambientes visuais intimidantes, talvez paisagens abstractas e sem indexante, que, no grande formato, no cromatismo pesado, nas formas em explosão, nos atingem com a violência e o fascínio estéticos da catástrofe. Vida a terminar, inevitabilidade da morte.
Entre nascer e morrer, O erro de Prometheus sugere-nos a inseparabilidade entre espírito e corpo, e, com ela, entre o corpo e o mundo natural. O espaço contornado pelas obras de Henrique Vieira Ribeiro salienta-nos a falência do fim da história. «Sempre que a arte acontece, a saber, quando há um princípio, produz-se na história um choque, a história começa ou recomeça de novo.»[i]. Princípio autêntico, que tem em si o devir. História enquanto propósito incumprido, fim inalcançado, que tanto desperta o movimento do corpo quanto o firma no barro e no pó do chão de que é feito. No espaço expositivo, estamos no meio da história, diante da nossa condição. (…
[i] Martin Heidegger, A origem da obra de arte (trad. Maria da Conceição Costa), ed. Edições 70, Lda. (2016).
Excerto do texto “Arde-nos o espírito” de Ricardo Escarduça