



A reflexão sobre a condição humana marca compasso na obra de Henrique Vieira Ribeiro. Em Prontuário dos Afectos esta reflexão é focalizada em torno da subjectividade, da identidade observada segundo o infinitamente incompleto arquivo da recordação, de um passado simultaneamente vivido e herdado que nos informa, juntamente com os intervalos do esquecimento, o curso da nossa vida enquanto sujeitos. A história de um sujeito, tal como de uma comunidade, faz-se naquilo que se escolhe, consciente ou inconscientemente, recordar e esquecer. Cabe ao esquecimento selecionar e modelar as recordações que dão corpo à memória. Neste sentido, a memória pode ser entendida como a composição transmissível e depositável de um universo particular de dados e de relações.
Read MoreO retrato de uma família coloca em questão tanto a representação da individualidade como da identidade de grupo: evidenciam-se relações dada a confluência dos retratados nos vários enquadramentos fotográficos, pela semelhança entre fisionomias mas, acima de tudo, dada a familiaridade com o género que encaminha o espectador para a efabulação de narrativas onde a história originária se perde. A palavra retrato foi, em tempos, quase um sinónimo de fotografia — dizia-se frequentemente que se “ia ao fotógrafo tirar o retrato”—, o género parecia assim circunscrever o meio; a fotografia, individual ou de grupo, correspondia à representação ou à apresentação de um “segundo melhor” (Bell, 1999, p. 12) à semelhança do que acontecia com a pintura e com a escultura, de uma versão caracterizadora e estetizada do fotografado endereçada ao futuro. Uma versão estetizada prontamente denuncia uma estilização que define o género. Mas estilização do retrato detém ainda a fundamental particularidade de operar além da imagem, ela opera também sobre a palavra frequentemente convocada para a função de legenda. Os afectos depositados neste suporte de memória são expressos por um breve texto delimitado à formalidade, a um modelo pré-estabelecido do qual ressalta a paradoxal impessoalidade de quem se oferece pela simbiose entre fotografia e palavra escrita.
Na instalação Prontuário dos Afectos (obra que concedeu o título à exposição) o artista apresenta-nos uma composição de mensagens, de testemunhos confiados a um outro participante na intimidade (mais ou menos presente, activo ou passivo dentro dos limites dessa intimidade), que se anexam à imagem oculta, reforçando, nessa relativa proximidade que o estilo permite, o apelo ao “dever de memória” (Augé, 2001, p. 104). Este dever é, tal como indicado por Marc Augé, o dever da lembrança e da actualização dessa mesma lembrança, é a evocação do passado ou, neste específico caso, do antepassado ao presente, é a intersecção com uma temporalidade perdida através dos vestígios aos descendentes deixados, que agora se estendem ao espectador.
No entanto, é também na intersecção entre estas temporalidades, na reinterpretação e na reconfiguração dos vestígios ou recordações — esses produtos da erosão pelo esquecimento (Augé, 2001, p. 26) — que se acentua a diluição da memória e do reconhecimento da identidade — o que sobra do sujeito representado na imagem? Quanto do seu carácter cabe nas suas palavras? O que na recordação encontramos dele e o que encontramos de nosso? E por fim, claro, encontraremos nós na memória algo que não seja exclusivamente nosso? Esta é a efectiva questão do retrato enquanto suporte de memória, parecendo já entreabrir algumas respostas na reflexão sobre o género executada por Henrique Vieira Ribeiro na série Retrato[s], pelo retalhar e reconfigurar da imagem-vestígio.
Em cada Retrato presenciamos então ao estilhaçar da recordação, ao total esbatimento da identidade em favor da afirmação padronizada do género que torna obsoleto — não há afinal um retratado, não há identificação, o retrato não cumpre mais com a sua função. Contudo o ”formato” do retrato persiste, a experiência de memória dá-se de forma involuntária pela familiaridade com o género: o seu reconhecimento firma sobrevivência ao esquecimento e ao completo anonimato, agindo pelo simples processo de (auto)identificação, de espelhamento, despontando uma participação activa na construção (senão reconstrução) de ficções que se aglutinam às nossas próprias narrativas.
A narrativa — a história de uma vida ou a história de uma comunidade — é a (re)construção e a (re)organização constante das recordações pelas quais se estabelece a memória. A construção contínua e actualização de uma narrativa implica uma participação imaginativa, ou seja, uma participação ficcional que se revela no processamento da sucessão de eventos que é, como anteriormente mencionado, filtrada pelo esquecimento (e desconhecimento), na dependência que a lembrança tem da informação, da comunicação ou de um diálogo que, mais não seja, do sujeito consigo próprio. Percebe-se assim que a eleição do que se escolhe lembrar defina o tom da verdade de cada um, o tom de toda a verdade sobre o homem apresentada. É este agenciamento da temporalidade e da lembrança que nos é proposto em Horizontes Brancos; recorrendo ao seu espólio privado, o artista apresenta-nos uma nova seleção e sucessão de imagens em negativos — de evidências do desenrolamento e vida de uma linhagem — convidado ao pensamento e ao diálogo, ao testemunho e à participação numa nova história que trespasse a memória.
Andreia César