



A exigência de uma fração de mundo mais profunda, de uma realidade sensível, rica e prodigiosa, que nos faça estremecer perante uma obra, pontua esta mostra individual de Henrique Vieira Ribeiro.
Tremor trata a experiência extrema, de simultânea inquietação e prazer, que a arte potencia: a condição da visibilidade, passível à indução de um estado de alma, no qual todos os movimentos sejam suspensos, em que a mente esteja tão completamente cheia do seu objeto que não consiga articular a sua assombrosa estranheza. O conjunto de obras apresentadas evidencia-se assim, embora de uma forma muito díspar, no domínio da tradição das representações trágicas, cuja marcada reverberação sobre o espectador Edmund Burke designou por sublime[1].
Read MoreO cenário de catástrofe que se anuncia em Apocalipse irradia essa mesma reverberação: mediante estas abstrações geradas sem referente mas reconhecíveis aos nossos olhos como paisagens de grande riqueza estética, ressalta um sentimento vertiginoso, um assistido terror que fascina, um medo salutar que se prende com a auto-preservação, com a nossa consciente fragilidade e condição mortal, que se afirma como uma elevação negativa.
Com Apocalipse, uma espécie de fenda abre-se sobre a superfície plana da paisagem e com ela uma vastidão de possibilidades que, se por um lado, percorrem a disposição natural da atenção para o detalhe, para o fragmento, para um estilhaço de memória, por outro, traçam o caminho inverso do fim dos tempos[2] para o princípio[3] ao culminar nos fotogramas de Génesis II. Estas imagens espectrais e enigmáticas operam, nas suas inesperadas formas, forças e ritmos, à fixação de recordações de luz – a matéria perde densidade e tudo passa a ser visto, entre os mesmos profundos cinzentos, pela sua incandescência, pela sua natureza luminosa obscurecida, atemporal e infinita.
Génesis I enceta o jogo da dualidade entre o positivo-negativo, delineando agora um percurso que parte da imagem para a matriz. Mais que a derivação do mesmo tema, Génesis II assinada a recuperação materializada da luz, provinda do sóbrio e ritmado alinhamento de colunas retangulares – como verdadeiros sustentáculos de cintilação – a luz trespassa as subtilezas das matrizes, para cessar a sua função de médium de toda a visibilidade e revelar-se a si, ofuscante, como se eclodisse, como se buscasse determinar em absoluto a sua referência simbólica, a da excrescência divina, enquanto vida que não cessa de se fazer, se excrescer[4].
É também a luz que funda o derradeiro encontro com a tríade Propagação #1, Metamorfose & Rumor. Três vídeos firmam um diálogo vertical marcado pelo simultâneo movimento de ocultação e revelação de excertos que apontam para o devir de Heraclito, para uma alternância cíclica e tensa entre estados contrários, entre os dois grandes pilares dos interditos humanos[5] – a morte e o nascimento – e ainda, pelo testemunhar contínuo da hipnotizante sequência, para a transgressão dos mesmos. Como se, subitamente, por meio da(s) obra(s) e ausentes da nossa carne, fossemos dotados da infinita capacidade de passar por uma semelhante experiência de morte e de renascimento, e assim conectarmo-nos com a dimensão ilimitada do sagrado.
Em Tremor é-nos proposta uma itinerância pautada por balanceadas tensões e antagonismos complementares, manifestos nas assombrosas séries que Henrique Vieira Ribeiro nos apresenta, como ainda nas relações estabelecidas nas inabitáveis câmaras clara e escura que lhes são destinadas, onde uma vez mais, no longínquo de nós e da nossa temporalidade, temos apenas que ceder ao precipício.
Andreia César 2016